Marabá, 13 de outubro de 2024

A Campanha da Fraternidade 2023 e os primeiros Escritores cristãos

24 de fevereiro de 2023   .   

Por Dom Vital Corbellini, Bispo de Marabá – PA.

            A Quaresma está em andamento bem como a Campanha da Fraternidade 2023 sobre a fome. A quaresma nos prepara para o mistério pascal da paixão, morte de ressurreição de Jesus e a Campanha envolve-nos em políticas públicas para que a sociedade e a Igreja fiquem sensibilizadas diante do flagelo da fome em vista de ações caritativas, boas em favor das pessoas famintas em unidade com a prática de Jesus, pela compaixão e pela ação. É preciso assumir a ordem de Jesus que é dar a comida aos que mais precisam: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). É importante fazer uma análise de alguns padres, primeiros escritores cristãos os quais comentaram a respeito da fome que atingiam muitas pessoas das comunidades onde viviam os ministros, as suas ações em favor dos pobres e dos necessitados.

            A caridade dada aos pobres.

Tertuliano, Padre da Igreja nos séculos II e III falou da ajuda que a comunidade prestava aos pobres e famintos. A comunidade vivia a sua fé unida a uma prática de vida. Ela se reunia para proclamar as leituras da Sagrada Escritura, seguidas das admoestações do presidente da comunidade; após estas coisas havia o momento da entrega dos bens, alimentos, que cada um trazia consigo. Tertuliano falava de uma caixa comum na qual as pessoas depositavam as coisas e os coordenadores da comunidade, bispos, sacerdotes e lideranças se responsabilizavam pelo destino justo de tudo aquilo que era oferecido. O teólogo africano trouxe um dado muito importante; a piedade, significando a moral e a fé, a prática de vida, manifestadas em Cristo Jesus. Quando o teólogo africano falava destas coisas ele tinha presente uma concepção teológica ligada à objetividade das coisas; o amor ao necessitado e aos que passavam fome. Por isto ele dizia que a sua comunidade de Cartago, as pessoas que traziam o dinheiro e alimentos à celebração comunitária eram em vista da caridade ao próximo”[1].

            Misericórdia e generosidade.

            São Basílio de Cesaréia, bispo, do século IV, dizia em suas regras pastorais, junto aos seus fiéis para serem misericordiosos e generosos para com aqueles e aquelas que não tinham os meios necessários para as suas vidas, porque muitas vezes os pobres eram colocados sob acusação, ou seja, eram criticados pelas pessoas que tinham o poder econômico ou político. Deste modo ele insistia para que qualquer coisa que alguém tivesse a mais do necessário para viver, fosse dado a eles em beneficência, segundo o preceito do Senhor, através da pregação do Precursor, João Batista que exortava a todos aqueles que tivessem duas túnicas, doassem as pessoas uma para quem não a tivesse e a quem possuísse comida fizesse o mesmo, através da partilha com os mais necessitados (Lc 3,11). A palavra de Deus também se concretizava pela exortação de São Paulo aos Coríntios que diz que todas as coisas que a pessoa possui é dom de Deus (1 Cor 4,7)[2].

            O trabalho dignifica o ser humano.

            São Basílio também teve presente à necessidade do trabalho para ganhar o pão de cada dia. Ele seguia São Paulo que exortava a todos para o trabalho para assim a pessoa ir para frente e louvar a Deus (2 Ts 3,10-12). Quem tem a possibilidade de trabalhar ajude as pessoas mais necessitadas. No entanto quem não quisesse trabalhar não era julgado merecedor de comer (2 Ts 3,10). Como São Paulo, o bispo afirmou que se deve prestar socorro aos débeis e que há mais alegria em dar do quem em receber (At 20,35). São Paulo ainda disse que as pessoas deixassem de roubar e fizesse um trabalho honesto com as suas mãos para ter coisas para serem dadas a quem está na necessidade (Ef 4,28)[3]. O trabalho é fundamental diante da problemática do desemprego, do pobre que passa por necessidades, de modo que se ele tiver algum trabalho tem condições de trazer para a sua casa alimento para os seus familiares.

            Aquilo que vai além do necessário.

            São Basílio dizia que deveria ter moderação na mesa sem que não se ultrapassasse os confins do necessário. Este é o limite a quem acolhe as pessoas que iriam às casas dos fiéis, sabendo que o abuso é o gasto que vai além do necessário. Ainda que seja o alimento de um dia, no entanto, se estiver bom é usado para as pessoas, mesmo àquelas que vêm de longe. O alimento, como dom de Deus não pode ser desperdiçado pelo luxo, pois ele sacia a fome dos famintos ou de pessoas necessitadas de alimento[4]. O fato é que quem aprecia o luxo não vive bem porque faz desperdício de muitas coisas possibilitando o aumento das injustiças no meio onde as pessoas vivem.

A fome, uma enfermidade espantosa

São Basílio ainda dizia que a fome é uma enfermidade espantosa, pois representa a maior das desventuras humanas; é aquela que possui o fim mais miserável de todas[5]. Ele também fez uma análise das mortes que aconteciam na existência humana; aquelas que se sucediam com a espada em caso de guerra; outras tinham como conseqüência a fé professada e, portanto eram martirizados; outros morriam no fogo ou mesmo sofriam o naufrágio. Todas estas formas de morte, ainda que indesejáveis à vida humana tivessem uma característica própria: a sua rapidez. A fome, ao invés levava consigo uma situação lenta, um sofrimento prolongado. São Basílio chamava-a de doença que se instala no corpo humano de uma forma escondida, pois ela tem como fim uma morte eminente e sempre em atraso. Ela vai consumindo a umidade natural, esfriando a temperatura corpórea. Tudo isto leva à diminuição do peso da pessoa, e atenua as suas forças de uma forma gradativa[6].

São Basílio não queria fazer uma poesia sobre a fome, mas ele dava uma especificação a uma realidade que atingia a muitas pessoas do mundo antigo e de suas comunidades cristãs. Ele dizia que o ser humano vem desfigurado, sendo que a condição de quem sofre a fome é uma negação da imagem de Deus (Gn 1,26), do qual o ser humano participa como dom e como missão. A justificação é dada pelo fato que as características pessoais são modificadas e com o tempo não são mais as mesmas; a pele perde o seu colorido atraente e a cor rósea do sangue vai desaparecendo. A própria proteção natural feita através da carne na pele e nos ossos diminui com o tempo por causa da magreza; os joelhos não possuem mais a força que antes eram presentes porque falta na pessoa faminta o sustento da comida; assim a voz torna-se débil, fraca; os olhos inertes e fundos não manifestam uma vida saudável porque com um estômago vazio, a pessoa necessitada não possui mais a gordura necessária às vísceras. Assim ela reduz o ritmo dos seus passos para não gastar mais forças e o seu sustento corporal è mantido em pé pelos ossos das costelas[7].

A doação aos pobres.

São Basílio também dizia que o pão que a pessoa retinha pertence à pessoa faminta, o manto que a pessoa guarda no armário é de quem de fato estaria nu; os sapatos que estão apodrecendo na casa pertencem ao descalço; o dinheiro enterrado é do necessitado. Muitas coisas poderiam ser feitas para socorrer a quem mais precisa, sobretudo os pobres e os famintos[8]. Percebe-se então a convicção de Basílio em relação à realidade da fome que era necessário realizar ações caritativas para favorecer os pobres e aqueles que passam a situação da fome.

Esforço à prática do bem comum.

São João Crisóstomo, bispo dos séculos IV e V exortava os seus fiéis ao esforço e a pratica do bem. O cristão olha o outro com fé para dar-lhe uma ajuda quanto necessária às suas carências materiais. O fato decisivo é que tanto a vida prometida como a punição serão eternas. Enquanto a pessoa está no tempo, é chamada a realização de coisas portadoras da verdadeira vida. O Bispo Crisóstomo fazia uma ligação da fome com o pão espiritual, o pão do Senhor dado para todos. A eucaristia, o dom de Deus descido do céu, possui como conseqüência “dar de comida ou bebida ou vestir alguém”, porque o recebimento do Senhor no pão eucarístico impulsiona o cristão para o outro, ao “necessitado”, e ver nele a presença de Cristo. São estas as coisas dignas daquela mesa[9], na qual somos chamados a participar ativamente com fé e com amor.

            A prática da caridade.

Santo Agostinho, bispo de Hipona, séculos IV e V falou da necessidade da realização da caridade. Esta não se faz só através das palavras como diz João (1 Jo 3,8). Ele diz: “O teu irmão passa fome, vive na necessidade; talvez aguarde com ansiedade a tua ajuda; Ele não tem nada e você tem; é teu irmão: Você e ele foram redimidos juntos pelo sangue de Cristo. Por isto tenhas misericórdia dele se possuis bens deste mundo” [10]. O bispo de Hipona insistia junto aos seus fiéis pela ajuda dada, para que a palavra de Jesus de dar de comer aos que tem fome fosse assumida na prática (Mt 14,16). A pessoa seguidora de Jesus não levaria só o nome como um orgulho pessoal, mas o demonstra pelos fatos isto é pela caridade fraterna sobretudo aos que sofrem fome. Jesus teve compaixão da multidão faminta de modo que ele fez o milagre da multiplicação dos pães e ele nos ensina a agir diante da realidade das pessoas que passam pelo flagelo da fome com misericórdia e com ações caritativas.

[1] Cfr. Tertuliano. Apologético, 39, 7. Tradução : Luis Carlos Lima Carpinetti. São Paulo, Paulus, 2021, pgs. 151-152.

[2] Cfr. Regole morali 48, 1-2. In: Basilio di Cesarea. La cura Del povero e l´onore della ricchezza. Testi dalle regole e dalla omelie, a cura di Luigi Pizzolato. Milano, Paoline, 2013, pg. 165.

[3] Cfr. Idem, 48, 7, pg. 171-173.

[4] Cfr. Idem, 20,3, pg. 193.

[5] Cfr. Omelia in tempo di fame, PG 31,322s. In:  Giordano Frosini. Il pensiero sociale dei Padri. Brescia, Queriniana, 1996, pg. 35.

[6] Cfr. Idem, pg. 35

[7] Cfr. Idem, pgs. 35-36.

[8] Cfr. Homilia do Evangelho segundo Lucas, 12,7. In: Basílio de Cesaréia. São Paulo, Paulus, 1998, pg. 36.

[9] Cfr. São João Crisóstomo. Comentários às Cartas de São Paulo/2. Homilias sobre a Primeira Carta aos Coríntios, 27,27. São Paulo, Paulus, 2010, pgs. 387-391.

[10] Cfr. In Epistolam ad Partos Tratactus, 24, (PL 35, 2018.). In: Opere di Sant’Agostino. Commento al Vangelo di San Giovanni, Roma, Città Nuova e NBA,1968.

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