Por Dom Vital Corbellini, Bispo de Marabá – PA.
Em vista do Jubileu de 2025, o ano santo com o lema: “Peregrinos de Esperança”, o Papa Francisco instituiu a Comissão dos Novos Mártires, testemunhas da fé no Dicastério para as causas dos santos com o objetivo de elaborar um catálogo para todas as pessoas que derramaram o seu sangue para confessar Cristo Jesus e deram o seu testemunho pelo evangelho, nas quais aquelas pessoas não podem ser esquecidas, disse o Papa Francisco[1]
É importante fazer uma análise a respeito do martírio na Igreja antiga, e o martírio na Igreja atual. Na Igreja primitiva, os mártires foram as testemunhas prediletas do Senhor, pois eles e elas doaram as suas vidas pelo Reino de Deus, pela Igreja. Muitos homens e mulheres passaram pelos sofrimentos, pelas dores, pelas cruzes, mas não desanimaram diante da alegria interior da fidelidade para com o Senhor. Eles enfrentaram as autoridades, as prisões, os animais ferozes, as calúnias por serem cristãos, e a morte violenta porque amaram a Jesus e ao seu povo. Nos primeiros tempos do cristianismo, como era proibida a religião cristã, os mártires tiveram presentes à fidelidade, a alegria de dar a vida pelo Senhor, o amor a Ele. O martírio na realidade atual continua ainda pelo testemunho a Jesus, mas as circunstâncias são diferentes no sentido de pessoas que lutaram pela fidelidade ao cristianismo, a Jesus, como a luta pela terra, pela vida dos pobres, dos necessitados, por uma causa do evangelho, que se tornou a causa do Senhor.
Martírio vem do grego mártyr ou martyrion cujo significado é testemunho, isto é, a pessoa que vê o fato e diz a sua opinião. Na literatura cristã, tratou-se daquele ou daquela que deu testemunho de Jesus, ao derramar o seu sangue pela própria fé e deu a sua vida pelo Reino de Deus[2].
O martírio era o testemunho diante do público, no presente, para o Senhor, em vista da escatologia, o mundo futuro, pela ressurreição da carne. Nesse sentido, o próprio Cristo disse aos discípulos: “Devo ser batizado com um batismo, e como estou ansioso até que isso se cumpra”(Lc 12,50). O Messias passou pelo sofrimento por parte das autoridades, morreu e ressuscitou no terceiro dia ( Mt 16,21). Ou mesmo na cruz ele disse ao bom ladrão arrependido: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”(Lc 23,43). No relato do martírio de Estêvão, este viu o céu aberto e a presença de Jesus à direita de Deus ( At 7,56). Havia uma grande multidão, todos com a palma na mão, fazendo a adoração a Deus e ao Cordeiro ( Ap 7, 9-17). Nos Padres da Igreja apareceu o dado da união com o Senhor, sobretudo em Inácio de Antioquia: “Não desejeis nada para mim, senão ser oferecido em libação a Deus, enquanto ainda existe altar preparado, a fim de que, reunidos em coro no amor, canteis ao Pai, por meio de Jesus Cristo”[3]. O mártir era aquele que seguia o mundo presente, mas ele possuía os olhos voltados para o futuro, a vida de Deus, a união com o Senhor pela qual eles davam as suas próprias vidas[4].
A graça do martírio.
O martírio não era fruto de uma decisão humana, mas o supremo testemunho de amor na qual o fiel confirmava a sua opção por Deus e por Cristo. O fiel imitava a paixão do Mestre divino que requeria uma perfeita comunhão de sentimentos e de vontade. Mas foi sobretudo obra da graça divina que em seu desígnio imperscrutável chamou alguns a render a testemunha suprema e adiar alguns outros, pois ainda não chegou a sua hora. O discípulo devia ser disponível, a hora que o Senhor o chamasse a dar a sua vida, não podendo nem menos provocar a prova. As palavras de Cipriano refletiram o pensamento da Igreja antiga que dizia para ninguém dos fiéis apresentarem-se espontaneamente aos gentios: “Se alguma pessoa fosse presa e dada aos magistrados deveria falar, porque Deus presente na pessoa, falaria naquela hora. O Senhor prefere mais segundo o bispo de Cartago, a confissão pública que a auto-denúncia”[5].
A essência do martírio.
A natureza do martírio referiu-se ao conjunto das coisas, que, no caso desse ideal, alcançasse o seguimento a Jesus Cristo na sua radicalidade. Os mártires enfrentavam as forças do mal, com a graça de Deus que agia neles, para se unir aos sofrimentos do Senhor. Por isso, o martírio foi em certo sentido, a bebida do cálice que Jesus bebeu, fazendo a vontade de Deus ( Mt 20,22). Este é o cálice da salvação e quem o toma invocará o nome do Senhor para se unir a ele ( Rm 10,13)[6]. O martírio manifestava uma atitude pública. Se a pessoa proferiria uma confissão de fé, a ação da graça divina agia nela. Se Deus chamava, ele dava a ajuda necessária para que a prova alcançasse o seu fim[7].
O martírio, um segundo batismo.
O martírio era visto um batismo verdadeiro, porque a pessoa derramava o seu sangue pela causa do Reino de Deus e do seguimento a Jesus Cristo. Segundo Tertuliano, esse era um segundo batismo, pelo derramamento de sangue, inspirado nas palavras de Jesus: “Devo ser batizado com um batismo, e como estou ansioso até que isso se cumpra”(Lc 12,50), ainda que tivesse sido batizado. “Esse é único, batismo de sangue. Se o Senhor veio, segundo João, na água e no sangue, para, dessa forma, batizar-se na água, para ser glorificado no sangue[8].
O Sangue dos mártires.
Tertuliano disse que o sangue dos mártires é semente de novos cristãos[9]. O fato era que o martírio impulsionava um engajamento de vida das pessoas em unidade com o Senhor Jesus até a sua morte. A pessoa que sofria o martírio era de comunidade, que participava da mesma, vivia a sua fé, esperança e caridade na família, na comunidade e no mundo. O sangue dos mártires era semente para o surgimento de novas pessoas para o seguimento a Jesus Cristo e à sua Igreja.
O mártir dos mártires aos de ontem e de hoje.
O mártir dos mártires é Jesus Cristo. Ele doou tudo de si para a nossa salvação. Os mártires da Igreja antiga, como também os mártires do mundo atual, nestas últimas décadas, tiveram como modelo de vida, Jesus Cristo. Eles lutaram até o fim por este ideal para ser meditado, amado, vivido. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a própria vida por seus amigos” (Jo 15,13). Jesus fez isso, assumindo a sua palavra dita tornando-se para todos os mártires modelo de vida, de dar a sua vida pela causa de Jesus e de seu Reino.
O martírio nestas últimas décadas.
São muitas as pessoas que nos tempos atuais deram as suas vidas pela causa do Reino de Deus e de Jesus. Eles assumiram a caridade de uma forma total. Eles confessaram a sua fé, a sua esperança e praticaram obras caritativas para o louvor de Jesus Cristo e de sua Igreja. Muitas pessoas, leigos, leigas, lideranças comunitárias e sociais, religiosos, religiosas, padres, bispos, derramaram o seu sangue por Jesus Cristo e à sua Igreja. Foram mortos de uma forma violenta, custando-lhes a vida. Muitas pessoas estão ligadas à luta pela terra, às causas dos povos indígenas, dos povos do campo e da cidade, das florestas, dando um grande testemunho de vida pela causa do Reino de Deus e de Jesus Cristo. O fascínio ao martírio é ainda grande no mundo atual, porque ele tem como ponto fundamental dar a vida por Cristo Jesus. É amá-lo nos irmãos e nas irmãs até o fim de suas vidas, até o derramamento do sangue.
Os mártires foram testemunhas de Cristo nas horas difíceis, sobretudo na hora de suas mortes, porque eles doaram as suas vidas por Jesus e pelo Reino. Os mártires dos primeiros séculos estão em comunhão com os mártires da atualidade, porque estavam unidos ao Senhor e à Igreja. A Comissão dos mártires na atualidade instituída por Papa Francisco alude aos mártires que viveram na radicalidade o amor a Deus, ao próximo como a si mesmo.
[1] Cfr. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-07. O Papa institui a Comissão dos Novos Mártires, testemunhas da fé.
[2] Cfr. V. Saxer, S. Heid. Martírio. In: Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane. Genova-Milano: Marietti, 2007, p. 3076.
[3] Cfr. Inácio aos Romanos, 2,2. In: Padres Apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995, p. 104.
[4] Cfr. Dom Vital Corbellini, O Martírio na Igreja Antiga. Brasília: Edições CNBB, 2019, p. 09.
[5] Ep. 81,4. In: Opere di San Cipriano, a cura di G. Toso. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinense, 1980.
[6] Cf. Origene. Esortazione al martirio,. Roma: Pontificia Università Urbaniana, 1985, p, 29.
[7] Cf. C. Noce. Il martirio, testimonianza e spiritualità nei primi secoli. Roma: Studium, 1987, p. 37.
[8] Cf. Tertulliano. De Bapt. 16,1. In Battesimo e Battisteri a cura di R. Iorio. Bologna: Dehoniane, 1993, p. 98-99. Ver também O sacramento do batismo nas fontes cristãs. Teologia e pastoral do batismo segundo Tertuliano. Introdução, Tradução dos originais e Comentários de U. Zilles. Porto Alegre: Est/Vozes, 1975, p.49-50.
[9] Cfr. Tertuliano. Apologético, 50,13. São Paulo: Paulus, 2021, p. 189.