Marabá, 11 de novembro de 2024

Nossa Senhora Aparecida e a concepção de Maria nos Padres da Igreja

25 de abril de 2023   .   

Por Dom Vital Corbellini, Bispo de Marabá – PA.

Como bispos nós estamos reunidos no Santuário de Nossa Senhora Aparecida para a sexagésima Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB). Desta forma, é muito importante aprofundar a missão de Maria a partir dos Padres da Igreja, os primeiros escritores cristãos. Eles elaboraram uma doutrina mariológica, um estudo em relação à Maria, tendo presente os dados bíblicos, mas também seguiram o testemunho de fé do povo cristão e do culto litúrgico. Eles consideraram Maria à luz do Verbo Encarnado, a sua encarnação, e o mistério pascal.

            A definição de fé do Concílio de Nicéia em 325 tratou da divindade do Verbo de Deus, desde sempre, portanto uma definição trinitária, mas também ele falou de Cristo como homem proveniente de Maria[1]. A seguir teremos presentes elementos mariológicos na doutrina cristã, do amor a Deus, ao próximo como a si mesmo. 

A análise do texto Lc 1,35.

Santo Ireneu de Lião.

Este texto mereceu atenção especial por parte de alguns padres, afirmando que Aquele que nasceu de Maria era santo, chamado Filho de Deus. Santo Ireneu de Lião, bispo do final do século II e início do século III, utilizou esse texto, para defendê-lo diante dos ebionítas, pois esses negavam a divindade do Verbo, porque para eles Jesus nasceu de uma forma normal de José e de Maria. Ele os defrontou, afirmando que aquilo que foi gerado em Maria é Santo, é o Filho de Deus em unidade com o Altíssimo, o qual é Pai de todas as coisas[2]. Para Ireneu de Lião, tratava-se da santidade do Verbo de Deus encarnado, ou seja, a nova geração, porque proveniente de Deus, o nascimento virginal, puro sem macha de pecado[3]. Com a encarnação do Filho de Deus, apareceu um novo nascimento a fim de que superássemos o nascimento anterior, que era de morte para que herdássemos a vida[4].

Tertuliano.

            Este texto (Lc 1,35) recebeu também de Tertuliano, padre do norte da África, século II e início do século III, considerações importantes para combater a controvérsia monarquiana que se de um lado salvaguardava o monoteísmo, a unidade em Deus, de outro lado negava as pessoas da Santíssima Trindade. Por isso Tertuliano defendeu no Adversus Praxean que o homem Jesus, nascido de Maria, era verdadeiramente Filho de Deus, antes Deus, é Filho do Altíssimo[5]. O fato de ser santo está ligado ao Filho de Deus. Para ele eram palavras sinônimas, semelhantes[6]: sanctum, santo era considerado como sinônimo de Filius Dei, Filho de Deus (Lc 1,35b). Tertuliano colocou a importância da unidade entre Jesus, concebido pela virgem e Cristo, que veio do Pai e se encarnou no ventre virginal de Maria.

            Novaciano.

            Novaciano seguiu Tertuliano no sentido da defesa da divindade de Jesus, que Jesus é verdadeiramente Filho de Deus, também diante da controvérsia dos monarquianos, pois esses também se apelavam a Lc 1,35 no sentido que havia uma distinção entre Jesus e Cristo no qual o Cristo, igual ao Pai, e ao Espírito Santo e Jesus nascido de Maria, o filho do homem, que chamava de filho de Deus no sentido que ele foi adotado como Deus, por isso era negada a sua divindade. Para eles se entenderia em Jesus, não Deus, mas o homem[7]. Novaciano afirmou que era preciso seguir as Escrituras, não sendo somente naquele momento Filho de Deus, Santo, mas “em princípio o Filho de Deus é o Verbo de Deus encarnado por meio daquele Espírito do qual afirmou o anjo: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra'(Lc 1,35). 

            A mariologia em Santo Inácio de Antioquia.

            Santo Inácio de Antioquia, bispo, final do século I e início do século II inseriu a doutrina mariológica no patrimônio dogmático da Igreja. Ele afirmava a dupla geração do Cristo: eterna por parte de Deus Pai e terrena por Maria[8]. Considerava Maria participante do projeto divino na história da salvação pela sua virgindade, a sua concepção e a morte do Senhor como sendo três grandiosos mistérios[9]. Ele defendeu contra os docetas, a realidade da encarnação de Cristo, Filho de Deus segundo a vontade e o poder de Deus, nascido verdadeiramente da Virgem, batizado por João[10].

             A mariologia em São Justino de Roma.

            São Justino de Roma, Padre da Igreja, século II foi um dos primeiros autores cristãos que ao paralelo paulino Cristo-Adão ( 1 Cor 15,45) contrapôs aquele de Maria-Eva. Na obra Diálogo com Trifão afirmou: “De fato quando ainda era virgem e incorrupta, Eva, tendo concebido a palavra que a serpente lhe disse, deu à luz a desobediência e a morte. A virgem Maria, porém, concebeu fé e alegria quando o anjo Gabriel lhe anunciou a boa notícia que o Espírito do Senhor viria sobre ela e que a força do Altíssimo a cobriria com a sua sombra, através do que o santo que dela nasceu seria o Filho de Deus. A isso, ela respondeu: ‘Faça-se em mim segundo a palavra'(Lc 1,38). E da virgem nasceu Jesus, ao qual demonstramos que tantas Escrituras se referem, pelo qual Deus destruiu a serpente e os anjos e homens que a ela se assemelham, e livra da morte aqueles que se arrependem de suas más ações e nele crêem”[11].

             A mariologia em Santo Ireneu de Lião.

                Este autor mereceu considerações importantes na teologia, na cristologia e também na mariologia. Ele desenvolveu uma função importante para a história da doutrina cristã sobre Maria Santíssima, colocando-a em uma situação única ao interior do mistério da salvação realizado em Cristo Jesus, em ligação com a encarnação do Verbo de Deus e do plano da redenção. Como nenhum outro autor cristão, aprofundou o duplo tema da recapitulação e da recirculação, em Cristo Jesus, desenvolvendo o confronto entre Eva e Maria a qual livrou o nó da desobediência de Eva, tornando-se causa de salvação por si e pelo gênero humano[12], sendo percebida também como a advogada de Eva[13]. Ele introduziu aspectos das ladainhas, que a piedade cristã rezará na comunidade, abrindo também a estrada à inserção de Maria no Símbolo apostólico[14]. Santo Ireneu insistiu sobre a profecia de Is 7,14 como sinal da Virgem que se tornou também colaboradora da salvação humana. Jesus Cristo encarnando-se tornou puro o seio da Virgem, regenerando os seres humanos em Deus[15]. A profissão de fé à maternidade virginal de Maria é pressuposto necessário para participar à salvação dada em Cristo Jesus.

            A mariologia em Tertuliano.

            A doutrina mariológica de Tertuliano influenciou a mariologia em si, colocando a importância da vida de Maria na Igreja, no plano de salvação de Deus pelo seu Filho ao mundo e para o ser humano. Diante das heresias gnósticas, reforçou o autor africano a realidade da humanidade de Cristo, realçando o fato que Ele possuía não um corpo celeste, mas um corpo verdadeiramente nascido da mesma substância da Virgem Maria. Ele afirmava a virgindade perpétua em Maria, seja antes do parto como também depois do mesmo, pois ele confrontou os docetistas, que negavam a Jesus Cristo um verdadeiro corpo humano, pretendendo que a sua concepção e o seu nascimento não fossem que aparentes. Para Tertuliano, Maria é a segunda Eva: “Eva era ainda virgem quando ela ouviu pelas orelhas a palavra sedutora que devia erigir o edifício da morte. Ocorria da mesma forma que fosse introduzido em uma virgem o Verbo de Deus que devia reconstruir o monumento da vida, de modo que aquilo que foi arruinado pelo mesmo sexo, pudesse ser recuperado para a salvação. Eva acreditou na serpente; Maria acreditou em Gabriel. A desventura que uma atirou com a sua credibilidade, a outra a eliminou com a  sua fé”[16].

            Mariologia em Orígenes

            O historiador Sozómeno informa que Orígenes usou a palavra Theotókos, titulo aplicado a Maria, Mãe de Deus[17]. Este titulo não foi encontrado nos seus livros que vieram à tradição, mas certamente estaria nos livros que foram destruídos. Além disso a Escola de Alexandria usava por muito tempo este titulo para exprimir a maternidade divina de Maria, quando se tornou objeto de polêmicas na primeira metade do século V contra o nestorianismo até a sua definição no Concilio de Éfeso(431).

A mariologia em Santo Hipólito de Roma.

Os dados provenientes de Santo Hipólito de Roma não são muitos mas aqueles que ele desenvolveu ajudaram a formular a presença de Maria na vida da Igreja e nos sacramentos. Ele colocou a importância de Maria no processo salvífico completado em Cristo Jesus. Um lenho foi construído na Arca, isto é o Senhor aludindo à pureza do pecado. Este autor inseriu Maria no evento central da encarnação seja na formulação de fé, seja na celebração eucarística[18].

            Conclusão.

            A mariologia dos padres foi importante na doutrina geral sobre a ciência que estuda Maria. Ela respondeu com alegria e amor ao plano de Deus, tornando-se dessa forma a mãe do Filho de Deus. Maria foi a serva do Senhor sempre disposta a servir o Senhor Deus, o Criador dos céus e da terra e dos seres humanos. Maria viveu o amor do Senhor de modo que as gerações a chamaram de bendita(cfr. Lc 1,48). Por isso os padres da Igreja, os primeiros escritores cristãos descreveram a importância de Maria na vida pessoal, comunitária e social. Maria foi fiel à palavra do Senhor no cumprimento da vontade do Pai. Ela seguiu em tudo o seu Filho, Jesus Cristo. Maria sempre aponta para o seu Filho em todos os pedidos que nós fizermos para ela. Maria é a nossa intercessora junto a Jesus Cristo.

 

[1] Cfr. S. Felici. Lo Sviluppo della dottrina mariana nell´età prenicena. In: La Mariologia nella catechesi dei Padri(età prenicena), a cura di Sergio Felici. Biblioteca di Scienze Religiose, 88. Roma, LAS, 1989, pgs. 9-11.

[2] Cfr. Ireneu de Lião, Contra as Heresias, V,1,3. SP, Paulus, 1995.

[3] Cfr. Idem, V,1,3.

[4] Cfr. Ibidem.

[5] Cfr. Adversus Praxean, 26,7. In: La Mariologia nella catechesi dei Padri(età prenicena),  pg. 26.

[6] Cfr. Idem, pg. 26.

[7] Cfr. Novaciano. A Trindade, 24,136. São Paulo, Paulus, 2017.

[8] Cfr. Inácio aos Efésios 7,2. In: Padres Apostólicos, São Paulo, Paulus, 1995.

[9] Cfr. Idem, 19,1.

[10]Cfr. Inácio aos Esmirniotas, 1,1.

[11] Cfr. Justino de Roma, Diálogo com Trifão, 100, 5. São Paulo, Paulus, 1995.

[12] Cfr. Ireneu de Lião. Contra as heresias, III,22,4.

[13] Cfr. Idem, V,19,1.

[14] Cfr. M. Maria Maritano. In: Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane. Marietti, Genova- Milano, 2007, pg. 3036.

[15] Cfr. Ireneu de Lião, Contra as heresias, IV,33,11.

[16] Cfr. Tertulliano.. De Carne Chr. 17. In: J. Quasten.  Patrologia. I primi due secoli(II-III).Casale, Marietti, 1992, pg. 566.

[17] Cfr. Stor. Eccles., 7,32.

[18] Cfr. M. Maria Maritano, In: Nuovo Dizionario Patristico e di Antichità Cristiane, pg. 3037.

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